terça-feira, 22 de abril de 2025

Excerto de A Cidade e os Cães, de Mario Vargas Llosa

Fotografia
    Excerto da obra A Cidade e os Cães, da autoria de Mario Vargas Llosa.

    Publicado em 1963, o livro narra o quotidiano dos alunos do colégio militar Leoncio Prado, em Lima, no Peru.

    Lê o trecho envolvente que transcrevemos de seguida.


    O Escravo estava só e descia a escadaria do rancho para o descampado quando duas tenazes seguraram os seus braços e uma voz murmurou junto ao seu ouvido: “Vem connosco, cão.” Ele sorriu e seguiu-os docilmente. Ao redor, muitos dos companheiros que tinha conhecido pela manhã eram abordados e arrastados pela relva rumo aos alojamentos do quarto ano. Nesse dia não houve aula. Os cães ficaram nas mãos dos cadetes do quarto ano do almoço até o jantar, umas oito horas. O Escravo não lembra a que seção foi levado, nem por quem. Mas o alojamento estava cheio de fumaça e uniformes, ouviam-se risadas e gritos. Mal cruzou a soleira, ainda com o sorriso nos lábios, sentiu um golpe nas costas. Caiu ao chão, girou sobre si mesmo, ficou estendido ali, de boca para cima. Tratou de se levantar, mas não conseguiu: um pé instalara-se sobre o seu estômago. Dez rostos indiferentes contemplavam-no como um inseto; não deixavam que visse o teto. Uma voz disse:

    — Para começar, cante cem vezes “eu sou um cão” em ritmo de corrido mexicano.

    Não conseguiu; estava atónito, os olhos fora das órbitas. A garganta ardia. O pé pressionou ligeiramente o estômago.

    — Não quer — disse a voz. — O cão não quer cantar.

    E então os rostos abriram as bocas e cuspiram nele, não uma, mas muitas vezes, até que teve de fechar os olhos. Quando terminou a saraivada, a mesma voz anónima, que girava como um torno, repetiu:

    — Canta cem vezes “eu sou um cão” em ritmo decorrido mexicano.

    Desta vez, obedeceu, e a sua garganta entoou roucamente a frase sobre a melodia de Allá en el rancho grande; era difícil: despojada da letra original, a música por vezes transformava-se em guinchos. Mas isso não parecia incomodá-los; escutavam atentamente.

    — Basta — disse a voz. — Agora em ritmo de bolero.

    Depois cantou com melodias de mambo e de valsa criolla. Por fim, ordenaram:

    — Em pé.

    Levantou-se e passou a mão no rosto. Limpou-a no fundilho. A voz perguntou:

    — Alguém mandou limpar o focinho? Não, ninguém mandou.

    As bocas voltaram a abrir-se e ele fechou os olhos automaticamente, até que aquilo terminou. A voz disse:

    — Esses dois ao teu lado são dois cadetes, cão. Sentido! Assim, muito bem. Esses dois cadetes fizeram uma aposta e tu vais ser o juiz.

    O da direita bateu primeiro e o Escravo sentiu queimar o antebraço. O da esquerda bateu quase ao mesmo tempo.

    — Muito bem — disse a voz. — Qual bateu mais forte?

    — O da esquerda.

    — Ah, é? — replicou outra voz. — Quer dizer que eu sou um fracote? Vamos ver, vamos repetir, repara bem.

    O Escravo cambaleou com o impacto, mas não chegou a cair: as mãos dos cadetes que o rodeavam seguraram-no e devolveram-no ao seu lugar.

    — E agora, o que achaste? Quem bate mais forte?

    — Os dois batem igual.

    — Quer dizer que ficaram na mesma — precisou a voz.

    — Vão ter que desempatar.

    Um momento depois, a voz incansável perguntou:

    — A propósito, cão. Os braços estão a doer?

    — Não — disse o Escravo.

    Era verdade; perdera a noção do corpo e do tempo. O seu espírito contemplava embriagado o mar sem ondas de Puerto Eten e escutava a mãe, que lhe dizia: “Cuidado com as arraias, Ricardito”, e estendia para ele os seus longos braços protetores sob o sol implacável.

    — Mentira — disse a voz. — Se não doem, estás a chorar por quê, cão?

    Ele pensou: “Já acabaram.” Mas eles mal tinham começado.

    — Tu és um cão ou um ser humano?

    — Um cão, meu cadete.

    — Então o que estás a fazer em pé? Os cães andam sobre as quatro patas.

    Ele inclinou-se; ao firmar as mãos no chão, surgiu a ardência nos braços, muito intensa. Os seus olhos descobriram junto a ele outro menino, também de quatro.

    — Muito bem — disse a voz. — E o que fazem os cães quando se encontram na rua? Responde, cadete, estou a falar contigo.

    O Escravo levou um pontapé no traseiro e respondeu de imediato:

    — Não sei, meu cadete.

    — Eles lutam — disse a voz. — Latem e enroscam-se. E mordem-se.

    O Escravo não se lembra da cara do menino que foi batizado juntamente com ele. Devia ser de uma das últimas seções, porque era baixinho. Estava com o rosto desfigurado pelo medo e, assim que a voz se calou, avançou contra ele, latindo e babando; o Escravo sentiu no ombro uma mordida de cão enraivecido; todo o seu corpo reagiu, e enquanto latia e mordia, tinha a certeza de que a sua pele se cobrira de um pelo duro, que a sua boca era um focinho pontiagudo e que, sobre o dorso, o seu rabo estalava como um chicote.

    — Basta — disse a voz. — Ganhaste. Mas o pequenote trapaceou. Não é cão, é cadela. E sabem o que acontece quando um cão e uma cadela se encontram na rua?

    — Não, meu cadete.

    — Eles lambem-se. Primeiro cheiram-se com carinho, depois lambem-se.

    E então tiraram-no do alojamento e levaram-no para o estádio, e não conseguia lembrar-se se ainda era dia ou se já caíra a noite. Ali o despiram, e a voz mandou que nadassem de costas pela pista de atletismo ao redor do campo de futebol. Depois, trouxeram-no de volta para um alojamento de quarto ano, e fez muitas camas e cantou e dançou em cima de um armário, imitou artistas de cinema, lustrou vários pares de coturnos, varreu uma lajota com a língua, fornicou com uma almofada, bebeu urina, mas tudo isso era uma vertigem febril e logo ele estava na sua secção, deitado na cama, pensando: “Juro que vou fugir. Amanhã mesmo.” O alojamento estava silencioso. Os meninos olhavam-se uns aos outros e, apesar de terem sido sovados, cuspidos, pintados e mijados, mostravam-se graves e cerimoniosos. Nessa mesma noite, depois do toque de recolher, nasceu o Círculo.

    Estavam deitados, mas ninguém dormia. O corneteiro acabara de sair do pátio. Imediatamente, uma silhueta destacou-se de uma das camas, cruzou o alojamento e entrou na casa de banho: os batentes ficaram a oscilar. Pouco depois ressoavam os estertores e o vómito ruidoso, espetacular. Quase todos pularam das camas e correram para a casa de banho, descalços: alto e esquálido, Vallano estava no meio do recinto amarelento, passando a mão sobre o estômago. Não se aproximaram, ficaram a examinar o negro de rosto congestionado enquanto vomitava. Por fim, Vallano aproximou-se da pia e enxaguou a boca. Então começaram a falar com uma agitação extraordinária e desordenada, maldizendo os cadetes de quarto ano com os piores palavrões.

    — Não pode ficar assim. Temos que fazer alguma coisa — disse Arróspide. O rosto branco destacava-se entre os meninos de rostos angulosos, cor de cobre. Estava furioso e vibrava o punho fechado no ar.

    — Vamos chamar esse tal de Jaguar — propôs Cava.

    Era a primeira vez que ouviam o nome. “Quem?”, perguntaram alguns; “é da secção?”

    — É, sim — disse Cava. — Ficou na cama. É a primeira, perto da casa de banho.

    — E porquê esse Jaguar? — disse Arróspide. — Nós não damos conta?

    — Não — disse Cava. — Não é isso. Ele é diferente.

    Não conseguiram batizar. Eu vi. Nem tiveram tempo. Foi para o estádio comigo, ali atrás dos alojamentos. E ele ria na cara deles e dizia: “Quer dizer que me vão batizar? Vamos ver, vamos ver.” Ria na cara deles, e eram uns dez.

    — E aí? — disse Arróspide.

    — Eles olhavam meio espantados — disse Cava.

    — E olha que eram uns dez. Mas só até nós chegarmos ao estádio, aí vieram mais, uns vinte, até mais, um montão de cadetes do quarto ano. E ele ria na cara deles: “Quer dizer que vão me batizar? Muito bem, muito bem.”

    — E aí? — disse Alberto.

    — Eles perguntavam: “Então tu achas que és valente, hein, cão?” E então, olha só, ele partiu para cima deles. E rindo. Sei lá quantos eram, dez ou vinte ou mais ainda. E não o conseguiam segurar. Alguns tiraram os cintos e chicoteavam de longe, mas não chegavam perto, juro. Estavam todos com medo, juro pela Santa Virgem, e vi não sei quantos caindo no chão, segurando os bagos ou com a cara amassada, imagina. E ele ria e gritava: “Quer dizer que me vão batizar? Muito bem, muito bem.”

    — E por quê isso de Jaguar?

    — Não fui eu que inventei — disse Cava. — É ele que se chama assim. Ele estava cercado, tinham-se esquecido de mim. Ameaçavam com os cintos e ele começou a insultar todos, a mãe, toda a gente. E então um deles disse: “Vamos chamar o Gambarina para cuidar desse animal.” E foram atrás de um cadete grandalhão, com cara de bruto, disseram que ele puxa ferro.

    — E trouxeram-no para quê? — perguntou Alberto.

    — E por que o chamam de Jaguar? — insistiu Arróspide.

    — Para lutar com ele — disse Cava. — Disseram-lhe: “Escuta, cão, já que és tão valente, bate num do teu tamanho.” E ele respondeu: “Eu chamo-me Jaguar. Cuidado com isso de me chamar cão.”

    — Eles riram?

    — Não — disse Cava. — Formaram uma roda. E ele sempre a rir. Até no meio da luta, imagina.

    — E depois? — perguntou Arróspide.

    — Não luta muito — disse Cava. — Foi aí que eu vi por que o chamam Jaguar. É muito ágil, uma barbaridade de ágil. Nem é muito forte, mas parece gelatina, o Gambarina esbugalhava os olhos de puro desespero, não o conseguia agarrar. E o outro batia com a cabeça e os pés, dava que dava, e nada de ele apanhar porrada. Até que o Gambarina disse: “Basta de brincadeira, cansei-me”, mas toda a gente viu que estava acabado.

    — E aí? — disse Alberto.

    — Foi só isso — disse Cava. — Largaram-no e começaram a batizar-me.

    — Vamos chamá-lo — disse Arróspide.

    Estavam de cócoras e formavam um círculo. Alguns tinham acendido um cigarro, que passavam de mão em mão. O recinto começou a encher-se de fumo. Quando o Jaguar entrou na casa de banho, precedido por Cava, todos compreenderam que este tinha mentido: o rosto e o queixo tinham sido golpeados, o nariz largo de buldogue também. Plantou-se no meio do círculo e fitava-os por trás das suas pestanas ruivas, com uns olhos estranhamente azuis e violentos. O trejeito da boca era forçado, assim como a postura insolente e a lentidão calculada com que os observava, um a um. Também era forçada a risada cáustica e súbita que trovejou no recinto. Mas ninguém o interrompeu. Esperaram, imóveis, que terminasse de examiná-los e de rir.

    — Dizem que o batizado dura um mês — afirmou Cava.

    — Não podemos aceitar que aconteça todos os dias o que aconteceu hoje.

    O Jaguar concordou.

    — É verdade — disse. — Temos que nos defender. Vamo-nos vingar do quarto ano, vão pagar caro pelas gracinhas. O principal é lembrar as caras e, se der, a secção e os nomes. Temos que andar sempre em grupos. Vamo-nos reunir à noite, depois do toque de recolher. E precisamos de um nome para o grupo.

    — Os Falcões? — insinuou alguém, timidamente.

    — Não — disse o Jaguar. — Parece brincadeira. Vamos chamar Círculo.

    As aulas começaram na manhã seguinte. Nos intervalos, os do quarto ano precipitavam-se sobre os cães e organizavam corridas de pato: a um comando, dez ou quinze rapazes, formados em linha reta, as mãos nos quadris e as pernas flexionadas, avançavam grasnando e imitando os movimentos de um palmípede. Os derrotados levavam ângulos retos. Além de revistar e confiscar o dinheiro e os cigarros dos cães, os do quarto ano preparavam aperitivos de graxa de fuzil, azeite e sabão, e as vítimas tinham que bebê-los de um só gole, segurando o copo com os dentes. O Círculo começou a funcionar dois dias após, pouco depois do pequeno-almoço. Os três anos saíam do rancho num tumulto e espalhavam-se como uma mancha sobre o descampado. De repente, uma nuvem de pedras passou sobre as cabeças descobertas e um cadete do quarto ano caiu no chão aos berros. Já em formação, viram que o ferido era levado para a enfermaria no ombro dos companheiros. Na noite seguinte, uma sentinela do quarto ano que dormia no relvado foi assaltada por sombras mascaradas: ao amanhecer, o corneteiro encontrou-o nu, amarrado e com grandes equimoses no corpo transido de frio. Outros mais foram apedrejados, sovados; o golpe mais audacioso, uma incursão na cozinha para derramar sacos de excrementos nas panelas de sopa do quarto ano, mandou muita gente com cólicas para a enfermaria. Exasperados pelas represálias anónimas, os do quarto ano prosseguiam o batizado com mais sanha. O Círculo reunia-se todas as noites, examinava os vários planos, o Jaguar escolhia um, aperfeiçoava-o e dava instruções. O mês de reclusão forçada transcorria rapidamente, no meio de uma exaltação sem limites. À tensão do batizado e das ações do Círculo veio somar-se uma nova agitação: a primeira saída estava perto, já tinham começado a fazer para eles os uniformes azul-anil. Todos os dias, os oficiais davam uma hora de aulas sobre o comportamento de um cadete uniformizado na rua.

    — O uniforme — dizia Vallano, revolvendo com avidez os olhos nas órbitas — atrai as pombinhas como se fosse mel.

    “Nem foi tão grave quanto diziam, nem quanto me pareceu no momento, sem contar o que aconteceu quando Gamboa entrou na casa de banho depois do toque de recolher, nem se pode comparar esse mês aos outros domingos de detenção, não mesmo.” Nesses domingos, o terceiro ano era dono do colégio. Projetavam um filme ao meio-dia, e à tarde vinham as famílias: os cães passeavam pela pista de desfile, pelo descampado, pelo estádio e pelos pátios, rodeados de gente solícita. Uma semana antes da primeira saída, provaram os uniformes de lona: calças cor de anil e túnica preta, com botões dourados; quepe branco. O cabelo crescia lentamente sobre os crânios, bem como a vontade de ir para a rua. Na secção, depois das reuniões do Círculo, os cadetes contavam os seus planos para a primeira saída. “E como foi que soubeste, por puro acaso ou foi um denunciante, e se o Huarina estivesse de serviço, ou o tenente Cobos? Pois é, pelo menos não tão rápido, se ele não tivesse descoberto o Círculo, a secção não teria desabado, não tão depressa, estaríamos no bem-bom.” O Jaguar estava de pé e descrevia um cadete do quarto ano, um chefe de turma. Os outros escutavam de cócoras, como de costume; as baganas passavam de mão em mão. O fumo subia, chegava ao teto, descia até o chão e continuava circulando como um monstro translúcido e cambiante. “Mas o que foi que ele fez, Jaguar, também não precisamos carregar um morto nas costas”, dizia Vallano, “vingança, tudo bem, mas aí já é demais”, dizia Urioste, “o que fede nesta história é que ele pode acabar vesgo”, dizia Pallasta, “pediu, levou”, dizia o Jaguar, “se ele se magoar, melhor”, e o que veio primeiro, a pancada, o grito? O tenente Gamboa deve ter empurrado a porta com as duas mãos ou então abriu-a a pontapés; mas os cadetes foram surpreendidos não com o barulho da porta nem com o grito de Arróspide, mas pelo fumo estancado que fugia pela bocarra escura do alojamento, quase tomada pelo tenente Gamboa, que segurava a porta com as duas mãos. As baganas caíram no chão, em brasas. Estavam descalços e não se atreviam a apagá-las. Todos olhavam para a frente e exageravam a atitude marcial. Gamboa pisou nas pontas de cigarro. Em seguida, contou os cadetes.

    — Trinta e dois — disse. — A secção completa. Quem é o chefe de turma?

    Arróspide deu um passo adiante.

    — Explica esta brincadeira com todos os detalhes — disse Gamboa, tranquilamente. — Do começo. E não esqueças nada.

    Arróspide olhava de esguelha para os companheiros, e o tenente Gamboa esperava, quieto como uma árvore. “E o modo como chorava? E depois éramos todos seus filhos quando começamos a choramingar, e que vergonha, meu tenente, nem imagina como nos batizaram, homem não se defende?, e que vergonha, batiam, meu tenente, magoavam, insultavam a mãe, olhe o fundilho do Montesinos de tanto ângulo reto que apanhou, meu tenente, e ele não passava recibo, que vergonha, não dizia nada, que mais, factos concretos, sem comentários, falem um por um, não façam barulho, não incomodem as outras secções, e que vergonha para o regulamento, começou a recitar, devia expulsar toda a gente, mas o Exército é tolerante e compreende que os cães ainda ignoram a vida militar, o respeito ao superior e a camaradagem, e basta de brincadeira, sim, meu tenente, e como é a primeira e a última vez não vou dar parte, sim, meu tenente, vamos ver se ficam homenzinhos, sim, meu tenente, fiquem a saber que basta uma reincidência e só paro no Conselho de Oficiais, sim, meu tenente, e decorem o regulamento se quiserem sair no sábado que vem, e agora vão dormir, sentinelas a postos, relatório em cinco minutos, sim, meu tenente.”

    O Círculo não se voltou a reunir, embora mais tarde o Jaguar pusesse o mesmo nome ao seu grupo. Nesse primeiro sábado de junho, os cadetes da secção, espalhados ao longo da grade enferrujada, viram os cães das outras seções, soberbos e arrogantes como uma torrente, precipitando-se pela avenida Costanera, tingindo-a com os seus uniformes reluzentes, o branco imaculado dos quepes e as malas lustrosas de couro; viram-nos aglomerando-se na parada maltratada, o mar crepitante às costas, à espera do autocarro Miraflores-Callao, ou avançando pelo meio da pista até à avenida de las Palmeras, para apanhar a avenida Progreso (que corta os sítios e entra em Lima por Breña ou, na direção oposta, continua baixando em curva suave e amplíssima até chegar a Bellavista e Callao); viram-nos desaparecendo e, quando o asfalto ficou novamente solitário e humedecido pela neblina, continuavam com os narizes metidos no arame; em seguida, escutaram a corneta que chamava para o almoço e foram caminhando devagar e em silêncio para os seus lugares, distanciando-se do herói que havia contemplado com as pupilas cegas a explosão de júbilo dos ausentes e a angústia dos detidos, que desapareciam entre os prédios cor de chumbo.

    Nessa tarde, quando saíam do rancho diante do olhar lânguido da vicunha, surgiu a primeira luta na seção. “Eu deixava, o Vallano deixava, o Cava, o Arróspide? Não, ninguém deixava, só mesmo ele, o Jaguar não é Deus, se ele respondesse, aí era tudo diferente, se aguentasse a situação ou pegasse num pau, numa pedra, aí era tudo diferente, até se corresse dali, mas tremer, homem, isso não se faz.” Ainda estavam na escadaria, amontoados, e de repente começou uma confusão e dois caíram na relva, dando pontapés. Os dois levantaram-se; trinta pares de olhos contemplavam-nos dos degraus, como se estivessem num palanque. Não chegaram a intervir, nem compreenderam logo o que aconteceu, porque o Jaguar se lançou como um felino atacado e bateu bem na cara do outro, sem aviso, e caiu em cima dele e continuou batendo na cabeça, na cara, nas costas; os cadetes observavam os dois punhos constantes e nem escutavam os gritos do outro, “desculpa, Jaguar, empurrei sem querer, juro que foi sem querer”. “Só não devia ter-se ajoelhado, isso não. E juntar as mãos, parecia a minha mãe nas novenas, um ajudante de missa a receber a primeira comunhão, parecia que o Jaguar era o bispo e o outro estava a confessar-se, lembro-me muito bem”, dizia Rospigliosi, “e fico de pelo em pé, homem.” O Jaguar estava em pé, olhava com desprezo para o rapaz ajoelhado e ainda estava com a mão levantada, como se fosse bater de novo no rosto lívido do outro. Os demais nem se mexiam. “Tu dás-me nojo”, disse o Jaguar. “Não tens dignidade nem nada. És um escravo.”