sábado, 15 de janeiro de 2011

Lifting a Twain

          De acordo com o jornal Público do dia 11, uma editora do estado do Alabama, a New South Books, prepara-se para reeditar As Aventuras de Huckleberry Finn, obra do célebre escritor norte-americano Mark Twain (1835 - 1910), publicada em 1884, expurgadas das referências às palavras «nigger» (219) e «injun», que constituem, respectivamente, uma referência pejorativa aos negros, pretos  e uma ofensa aos índios. A primeira será, assim, substituída pelo termo «slave» e a segunda por «indian».A justificação para este «lifting», uma censura dos tempos modernos, reside no carácter ofensivo que as palavras comportam, o que significa que descemos, mais uma vez, como é característico dos tempos que vivemos, no que diz respeito à cultura ocidental, ao campo do politicamente correcto.

          O que é mais espantoso no gesto é que ele evidencia a ignorância estúpida dos seus autores, pois Mark Twain, ao usar os termos referidos, estava a denunciar e a expor a injustiça com que eram tratadas as personagens. Mais: ignoram que o escritor foi um defensor da abolição da escravatura e do alargamento dos direitos civis dos negros norte-americanos e que a composição da personagem do romance Jim, o companheiro de Huck Finn, se baseou na figura de John Lewis, um negro de quem foi grande amigo. Esta solidariedade valer-lhe-ia, inclusive, anos volvidos, a acusação de possuir uma grande quantidade de «sangue negro».

          Com afirma o Professor Rui Bebiano (in http://aterceiranoite.org/), «Vale sempre a pena, diante de tais afirmações de reiterada ignorância, imprecisão ou mera estupidez, insistir no perigo que comporta este tipo de escolha supostamente purificadora. Em nome da omissão de palavras ou de conceitos julgados depreciativos, ou na tentativa de contrariar uma absurda «censura preventiva» – que tem levado, por exemplo, à retirada de algumas bibliotecas públicas americanas de livros, clássicos muitos deles, contendo termos julgados «impróprios» –, alteram-se obras literárias e apagam-se pedaços de uma realidade historicamente vivida ou imaginada em contextos muito diversos e que só podem ser compreendidos nas suas circunstâncias. Com tais gestos dilui-se também o rastro de etapas dos processos de emancipação das sociedades e das próprias palavras. Voltando-se o feitiço contra o feiticeiro, se é que não convirá referir este profissional como «técnico de práticas mágicas», «agente de subculturas locais» ou coisa que o valha.»