quarta-feira, 25 de março de 2015

Um poema de Herberto Helder

a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação,
¿e se me tocam a boca?
de noite, a mexer na seda para, desdobrando-se,
a noite extraterrestre bruxulear um pouco,
o último,
assim como que húmido, animal, intuitivo, de origem,
papel de seda que a rútila força lírica rompa,
um arrepio dentro dele,
batido, pode ser, no sombrio, como se a vara enflorasse com as faúlhas,
e assim a mão escrita se depura,
e se movem, estria atrás de estria, pontos voltaicos,
manchas ultravioletas a arder através do filme,
leve poema técnico e trémulo,
a vida inteira para fundar um poema,
a pulso,
um só, arterial, com abrasadura,
que ao dizê-lo os dentes firam a língua,
que o idioma se fira na boca inábil que o diga,
só quase pressentimento fonético,
filológico,
mas que atenção, paixão, alumiação,
¿e se me tocam a boca?
de noite, a mexer na seda para, desdobrando-se,
a noite extraterrestre bruxulear um pouco,
o último,
assim como que húmido, animal, intuitivo, de origem,
papel de seda que a rútila força lírica rompa,
um arrepio dentro dele,
batido, pode ser, no sombrio, como se a vara enflorasse com as faúlhas,
e assim a mão escrita se depura,
e se movem, estria atrás de estria, pontos voltaicos,
manchas ultravioletas a arder através do filme,
leve poema técnico e trémulo,
linhas e linhas,
línguas,
obra-prima do êxtase das línguas,
tudo movido virgem,
e eu que tenho a meu cargo delicadeza e inebriamento
¿tenho acaso no nome o inominável?
mão batida, curta, sem estudo, maravilhada apenas,
nada a ver com luminotecnia prática ou teórica,
mas com grandes mãos, e eu brilhei,
o meu nome brilhou entrando na fase inconsútil,
e depois o ar, e os objectos que ocorrem: onde?
fora? dentro?
no aparte,
no mais vidrado,
no avêsso,
no sistema demoroso do bicho interrompido na seda,
fibra lavrada sangrando,
uma qualquer arte intrépida por uma espécie de pilha eléctrica
como alma: plenitude,
através de um truque:
os dedos com uma, suponhamos, estrela que se entorna sobre a mesa,
poema trabalhado a energia alternativa,
a fervor e ofício,
enquanto a morte come onde me pode a vida toda

                                                                      [in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, 2008]

Calou-se um poeta: Herberto Helder


     O poeta Herberto Helder faleceu na passada segunda-feira na sua casa de Cascais, aos 84 anos.
     Considerado por vários autores o poeta mais importante da segunda metade do século XX, à semelhança de Fernando Pessoa na primeira, Herberto Helder criou uma obra notável, uma espécie de «poema contínuo constantemente reescrito», que culminou com a publicação de A Morte sem Mestre, em 2014.
     O escritor nasceu a 23 de novembro de 1930 no Funchal e publicou os seus primeiros poemas precisamente em antologias madeirenses - Arquipélago (1952) e Poemas Bestiais (1954) - e na revista "Búzio". Já a sua obra de estreia, O Amor em Visita, datada de 1958, foi editada pela Contraponto, numa época em que o poeta fazia parte do grupo surrealista lisboeta que tinha como figuras principais Mário Cesariny e Luís Pacheco.
     Frequentou entretanto a Universidade de Coimbra - primeiro a faculdade de Direito e depois o curso de Filologia RoMãnica -, mas não concluiu a sua frequência. Nessa fase da vida, teve vários empregos (uma «tradição» que manteve ao longo de grande parte da existência), desde a Caixa Geral de Depósitos até ao Serviço Meteorológico, passando pelas áreas da publicidade e da propaganda médica.
     Em 1961, publicou a obra que o consagrou enquanto poeta: A Colher na Boca. Seguiram-se-lhe muitas outras, como Vocação Animal (1971), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), A Cabeça entre as Mãos (1982), A Última Ciência (1988), Do Mundo (1994), A Faca não Corta o Fogo (2008) ou Servidões (2013), bem como os intervalos de tempo de eclipse.
     Avesso a aparições públicas, a fotografias e a entrevistas, recusou, em 1994, a atribuição do Prémio Pessoa, pedindo que o dessem a outro.