quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Vocativo

Análise do soneto "Tanto de meu estado me acho incerto"

            Luís Vaz de Camões foi um poeta renascentista português, nascido por volta de 1524, em Lisboa, tendo morrido a 10 de junho de 1580. É o maior representante do Classicismo português. A sua obra mais célebre são Os Lusíadas, embora tenha escrito várias outras, bem como poemas que foram posteriormente compilados em 1595, 15 anos após a sua morte, na coletânea Rimas, onde encontramos o texto em estudo, Tanto de meu estado me acho incerto. Este soneto insere-se na corrente renascentista, o Classicismo ou Quinhentismo, e é um exemplo da medida nova, visto que este tipo de composição poética foi importado de Itália nesse período por Sá de Miranda.
            Neste texto é abordado o tema da experiência amorosa e o assunto compreende os efeitos contraditórios que a observação da mulher que ama causa no sujeito poético e o sofrimento amoroso provocado por esse momento.
            O poema é um soneto, logo é constituído por duas quadras e dois tercetos, num total de 14 versos decassilábicos: Tan/to/de/meu/es/ta/do/me a/cho in/cer/to. A rima é interpolada e emparelhada, com o seguinte esquema rimático: ABBA/ABBA/CDE/CDE. Em todo o texto, a rima é rica, pois as palavras rimantes não pertencem à mesma classe gramatical (“incerto” – adjetivo/ “aperto” – forma verbal), com a exceção dos grupos de versos 9 e 12 e 11 e 14, em que a rima é pobre (“voando” / “ando” – formas verbais).
            Esta composição pode dividir-se em duas partes. Na primeira, que corresponde às três primeiras estrofes, é descrito o estado de espírito do sujeito poético, caracterizado por sentimentos contraditórios e pelo “desconcerto” (v. 5), pela tristeza, pelo sofrimento. Na última estrofe, que corresponde à segunda parte, descobrimos uma possível causa desse estado de espírito: a observação da mulher amada.
            Os sentimentos do sujeito poético são tão intensos que se tornam contraditórios (“que em vivo ardor tremendo estou de frio” – v. 2). Ele está em desacordo consigo mesmo e em sofrimento. O “eu” lírico suspeita que o amor, isto é, a observação da sua amada, seja a causa desse conflito interno. Ao longo do soneto, para realçar a inquietação atual e contínua do sujeito poético, são utilizadas antíteses (“ardor” / “frio” – v. 2; “choro” / “rio” – v. 3; “todo abarco” / “nada aperto” – v. 4; “fogo” / “rio” – v. 6). Também com a finalidade de demonstrar a sucessão e a intensidade deles, o poeta recorre a anáforas (“agora espero, agora desconfio/ agora desvario, agora acerto” – vv. 7-8), que mostram igualmente o estado permanente de ansiedade e de sofrimento em que o sujeito poético vive. Como já foi visto noutros textos de Camões, o amor é aproximado a realidades intensas, como os elementos da natureza, para realçar o fervor deste sentimento, como podemos observar no verso 6 (“da alma um fogo me sai, da vista rio”). Nesse verso, assim como no 9, observamos hipérboles, usadas para amplificar o sofrimento do sujeito lírico e para destacar o delírio amoroso do “eu” poético (“estando em terra, chego ao Céu voando”). O desejo de ver e de estar com a mulher que ama é tão forte e o estado de perturbação dele é tão veemente que tem uma perceção contraditória do tempo, criando assim um paradoxo (“nu’hora acho mil anos” – v. 10). A utilização da apóstrofe (“minha senhora” – v. 14) remete para a noção de mulher inatingível, a quem o sujeito poético presta vassalagem. Todos estes sentimentos conflituantes são provocados pelo amor, o que o transforma num sentimento contraditório.
Na escrita deste poema, Camões teve influências italianas, de Petrarca e da lírica trovadoresca. Vemos a influência da poesia trovadoresca quando a mulher amada é referida como “minha Senhora” (v. 14). Em grande parte das cantigas de amor galego-portuguesas, assim como no texto, não existe interação entre os dois, somente contemplação da senhora por parte do sujeito poético (trovador), que lhe presta vassalagem sem esperar nada em troca. Também é influência desta forma de literatura o facto de a contemplação da mulher amada ser uma etapa do processo amoroso. Já a influência de Petrarca é mais extensa. Petrarca foi um poeta renascentista italiano em quem Camões se inspirou para descrever a figura feminina dos seus poemas (cujo retrato idealizado vem já das cantigas de amor). Nos seus poemas, o “eu” lírico descreve o desconcerto e o sofrimento provocados pela observação da amada, bem como os efeitos contraditórios do amor, tal como o poeta português faz neste poema. As influências italianas resumem-se ao uso do soneto e do verso decassilábico.
Podemos então concluir que o amor, nomeadamente a visão da mulher que ama, perturba o sujeito poético ao ponto de ficar num estado permanente de ansiedade e de sofrimento devido à contradição dos seus sentimentos. Camões relata este acontecimento, embelezando-o e enriquecendo-o de uma maneira única, como nenhum outro poeta português alguma vez conseguiu, mostrando-nos mais uma vez o seu valor e a sua superioridade em relação a todos os outros grandes poetas.

Joana Pinto Coelho
N.º 4
10.º AB