segunda-feira, 27 de abril de 2015

"Testamento de vgm"

deixo a meus filhos versos cultos
e também prosas às centenas
(os meus dois filhos são adultos
e as minhas filhas são pequenas)
e muito amor: não deixo apenas,
tudo somado, alguns direitos,
e fui bom pai, nunca fiz cenas
e fi-los sãos e escorreitos.

e à minha neta Francisquinha,
senhora que é do seu nariz,
deixo a ternura que esta linha
desajeitadamente diz
e seja a flor desta raiz
já desgrenhada que deu frutos
e tenha sorte num país
em que o avô lidou com brutos.

aos meus irmãos, aos meus cunhados,
à primalhada, um grande abraço,
lembrando bons e maus bocados
que reforçaram sempre o laço
que nos unia a cada passo,
quer no lazer, quer no trabalho,
e quando eu for lívido e baço
sintam que assim eu inda valho.

não creio em deus, não me atingiram
seus metafísicos engodos.
no homem que sou evoluíram
peixes, macacos, algas, lodos,
celtas, judeus, romanos, godos,
mas recebi, por formação,
os sacramentos quase todos
e só me falta a extrema-unção.

" - terceira idade", digo e brinco,
sem ter poção nem amuleto
que me devolva aos trinta e cinco
e reestofe o esqueleto.
outros fariam um soneto
de hora final quando a mão treme,
eu escrevi este folheto
e assinei-o vgm.

                    Vasco Graça Moura