O Escravo estava só e descia a escadaria do rancho para o
descampado quando duas tenazes seguraram os seus braços e uma voz murmurou
junto ao seu ouvido: “Vem connosco, cão.” Ele sorriu e seguiu-os docilmente. Ao
redor, muitos dos companheiros que tinha conhecido pela manhã eram abordados e
arrastados pela relva rumo aos alojamentos do quarto ano. Nesse dia não houve
aula. Os cães ficaram nas mãos dos cadetes do quarto ano do almoço até o
jantar, umas oito horas. O Escravo não lembra a que seção foi levado, nem por
quem. Mas o alojamento estava cheio de fumaça e uniformes, ouviam-se risadas e
gritos. Mal cruzou a soleira, ainda com o sorriso nos lábios, sentiu um golpe
nas costas. Caiu ao chão, girou sobre si mesmo, ficou estendido ali, de boca
para cima. Tratou de se levantar, mas não conseguiu: um pé instalara-se sobre o
seu estômago. Dez rostos indiferentes contemplavam-no como um inseto; não
deixavam que visse o teto. Uma voz disse:
— Para começar, cante cem vezes “eu sou um cão” em ritmo de
corrido mexicano.
Não conseguiu; estava atónito, os olhos fora das órbitas. A
garganta ardia. O pé pressionou ligeiramente o estômago.
— Não quer — disse a voz. — O cão não quer cantar.
E então os rostos abriram as bocas e cuspiram nele, não uma,
mas muitas vezes, até que teve de fechar os olhos. Quando terminou a saraivada,
a mesma voz anónima, que girava como um torno, repetiu:
— Canta cem vezes “eu sou um cão” em ritmo decorrido
mexicano.
Desta vez, obedeceu, e a sua garganta entoou roucamente a
frase sobre a melodia de Allá en el rancho grande; era difícil:
despojada da letra original, a música por vezes transformava-se em guinchos.
Mas isso não parecia incomodá-los; escutavam atentamente.
— Basta — disse a voz. — Agora em ritmo de bolero.
Depois cantou com melodias de mambo e de valsa criolla.
Por fim, ordenaram:
— Em pé.
Levantou-se e passou a mão no rosto. Limpou-a no fundilho. A
voz perguntou:
— Alguém mandou limpar o focinho? Não, ninguém mandou.
As bocas voltaram a abrir-se e ele fechou os olhos
automaticamente, até que aquilo terminou. A voz disse:
— Esses dois ao teu lado são dois cadetes, cão. Sentido!
Assim, muito bem. Esses dois cadetes fizeram uma aposta e tu vais ser o juiz.
O da direita bateu primeiro e o Escravo sentiu queimar o
antebraço. O da esquerda bateu quase ao mesmo tempo.
— Muito bem — disse a voz. — Qual bateu mais forte?
— O da esquerda.
— Ah, é? — replicou outra voz. — Quer dizer que eu sou um
fracote? Vamos ver, vamos repetir, repara bem.
O Escravo cambaleou com o impacto, mas não chegou a cair: as
mãos dos cadetes que o rodeavam seguraram-no e devolveram-no ao seu lugar.
— E agora, o que achaste? Quem bate mais forte?
— Os dois batem igual.
— Quer dizer que ficaram na mesma — precisou a voz.
— Vão ter que desempatar.
Um momento depois, a voz incansável perguntou:
— A propósito, cão. Os braços estão a doer?
— Não — disse o Escravo.
Era verdade; perdera a noção do corpo e do tempo. O seu
espírito contemplava embriagado o mar sem ondas de Puerto Eten e escutava a
mãe, que lhe dizia: “Cuidado com as arraias, Ricardito”, e estendia para ele os
seus longos braços protetores sob o sol implacável.
— Mentira — disse a voz. — Se não doem, estás a chorar por
quê, cão?
Ele pensou: “Já acabaram.” Mas eles mal tinham começado.
— Tu és um cão ou um ser humano?
— Um cão, meu cadete.
— Então o que estás a fazer em pé? Os cães andam sobre as
quatro patas.
Ele inclinou-se; ao firmar as mãos no chão, surgiu a
ardência nos braços, muito intensa. Os seus olhos descobriram junto a ele outro
menino, também de quatro.
— Muito bem — disse a voz. — E o que fazem os cães quando se
encontram na rua? Responde, cadete, estou a falar contigo.
O Escravo levou um pontapé no traseiro e respondeu de
imediato:
— Não sei, meu cadete.
— Eles lutam — disse a voz. — Latem e enroscam-se. E mordem-se.
O Escravo não se lembra da cara do menino que foi batizado
juntamente com ele. Devia ser de uma das últimas seções, porque era baixinho.
Estava com o rosto desfigurado pelo medo e, assim que a voz se calou, avançou
contra ele, latindo e babando; o Escravo sentiu no ombro uma mordida de cão
enraivecido; todo o seu corpo reagiu, e enquanto latia e mordia, tinha a certeza
de que a sua pele se cobrira de um pelo duro, que a sua boca era um focinho
pontiagudo e que, sobre o dorso, o seu rabo estalava como um chicote.
— Basta — disse a voz. — Ganhaste. Mas o pequenote
trapaceou. Não é cão, é cadela. E sabem o que acontece quando um cão e uma
cadela se encontram na rua?
— Não, meu cadete.
— Eles lambem-se. Primeiro cheiram-se com carinho, depois lambem-se.
E então tiraram-no do alojamento e levaram-no para o
estádio, e não conseguia lembrar-se se ainda era dia ou se já caíra a noite.
Ali o despiram, e a voz mandou que nadassem de costas pela pista de atletismo
ao redor do campo de futebol. Depois, trouxeram-no de volta para um alojamento
de quarto ano, e fez muitas camas e cantou e dançou em cima de um armário,
imitou artistas de cinema, lustrou vários pares de coturnos, varreu uma lajota
com a língua, fornicou com uma almofada, bebeu urina, mas tudo isso era uma
vertigem febril e logo ele estava na sua secção, deitado na cama, pensando:
“Juro que vou fugir. Amanhã mesmo.” O alojamento estava silencioso. Os meninos olhavam-se
uns aos outros e, apesar de terem sido sovados, cuspidos, pintados e mijados,
mostravam-se graves e cerimoniosos. Nessa mesma noite, depois do toque de
recolher, nasceu o Círculo.
Estavam deitados, mas ninguém dormia. O corneteiro acabara
de sair do pátio. Imediatamente, uma silhueta destacou-se de uma das camas,
cruzou o alojamento e entrou na casa de banho: os batentes ficaram a oscilar.
Pouco depois ressoavam os estertores e o vómito ruidoso, espetacular. Quase
todos pularam das camas e correram para a casa de banho, descalços: alto e
esquálido, Vallano estava no meio do recinto amarelento, passando a mão sobre o
estômago. Não se aproximaram, ficaram a examinar o negro de rosto congestionado
enquanto vomitava. Por fim, Vallano aproximou-se da pia e enxaguou a boca.
Então começaram a falar com uma agitação extraordinária e desordenada,
maldizendo os cadetes de quarto ano com os piores palavrões.
— Não pode ficar assim. Temos que fazer alguma coisa — disse
Arróspide. O rosto branco destacava-se entre os meninos de rostos angulosos,
cor de cobre. Estava furioso e vibrava o punho fechado no ar.
— Vamos chamar esse tal de Jaguar — propôs Cava.
Era a primeira vez que ouviam o nome. “Quem?”, perguntaram
alguns; “é da secção?”
— É, sim — disse Cava. — Ficou na cama. É a primeira, perto
da casa de banho.
— E porquê esse Jaguar? — disse Arróspide. — Nós não damos
conta?
— Não — disse Cava. — Não é isso. Ele é diferente.
Não conseguiram batizar. Eu vi. Nem tiveram tempo. Foi para
o estádio comigo, ali atrás dos alojamentos. E ele ria na cara deles e dizia:
“Quer dizer que me vão batizar? Vamos ver, vamos ver.” Ria na cara deles, e
eram uns dez.
— E aí? — disse Arróspide.
— Eles olhavam meio espantados — disse Cava.
— E olha que eram uns dez. Mas só até nós chegarmos ao
estádio, aí vieram mais, uns vinte, até mais, um montão de cadetes do quarto
ano. E ele ria na cara deles: “Quer dizer que vão me batizar? Muito bem, muito
bem.”
— E aí? — disse Alberto.
— Eles perguntavam: “Então tu achas que és valente, hein, cão?”
E então, olha só, ele partiu para cima deles. E rindo. Sei lá quantos eram, dez
ou vinte ou mais ainda. E não o conseguiam segurar. Alguns tiraram os cintos e
chicoteavam de longe, mas não chegavam perto, juro. Estavam todos com medo,
juro pela Santa Virgem, e vi não sei quantos caindo no chão, segurando os bagos
ou com a cara amassada, imagina. E ele ria e gritava: “Quer dizer que me vão batizar?
Muito bem, muito bem.”
— E por quê isso de Jaguar?
— Não fui eu que inventei — disse Cava. — É ele que se chama
assim. Ele estava cercado, tinham-se esquecido de mim. Ameaçavam com os cintos
e ele começou a insultar todos, a mãe, toda a gente. E então um deles disse:
“Vamos chamar o Gambarina para cuidar desse animal.” E foram atrás de um cadete
grandalhão, com cara de bruto, disseram que ele puxa ferro.
— E trouxeram-no para quê? — perguntou Alberto.
— E por que o chamam de Jaguar? — insistiu Arróspide.
— Para lutar com ele — disse Cava. — Disseram-lhe: “Escuta,
cão, já que és tão valente, bate num do teu tamanho.” E ele respondeu: “Eu
chamo-me Jaguar. Cuidado com isso de me chamar cão.”
— Eles riram?
— Não — disse Cava. — Formaram uma roda. E ele sempre a rir.
Até no meio da luta, imagina.
— E depois? — perguntou Arróspide.
— Não luta muito — disse Cava. — Foi aí que eu vi por que o
chamam Jaguar. É muito ágil, uma barbaridade de ágil. Nem é muito forte, mas
parece gelatina, o Gambarina esbugalhava os olhos de puro desespero, não o conseguia
agarrar. E o outro batia com a cabeça e os pés, dava que dava, e nada de ele apanhar
porrada. Até que o Gambarina disse: “Basta de brincadeira, cansei-me”, mas toda
a gente viu que estava acabado.
— E aí? — disse Alberto.
— Foi só isso — disse Cava. — Largaram-no e começaram a
batizar-me.
— Vamos chamá-lo — disse Arróspide.
Estavam de cócoras e formavam um círculo. Alguns tinham
acendido um cigarro, que passavam de mão em mão. O recinto começou a encher-se
de fumo. Quando o Jaguar entrou na casa de banho, precedido por Cava, todos
compreenderam que este tinha mentido: o rosto e o queixo tinham sido golpeados,
o nariz largo de buldogue também. Plantou-se no meio do círculo e fitava-os por
trás das suas pestanas ruivas, com uns olhos estranhamente azuis e violentos. O
trejeito da boca era forçado, assim como a postura insolente e a lentidão
calculada com que os observava, um a um. Também era forçada a risada cáustica e
súbita que trovejou no recinto. Mas ninguém o interrompeu. Esperaram, imóveis,
que terminasse de examiná-los e de rir.
— Dizem que o batizado dura um mês — afirmou Cava.
— Não podemos aceitar que aconteça todos os dias o que
aconteceu hoje.
O Jaguar concordou.
— É verdade — disse. — Temos que nos defender. Vamo-nos
vingar do quarto ano, vão pagar caro pelas gracinhas. O principal é lembrar as
caras e, se der, a secção e os nomes. Temos que andar sempre em grupos. Vamo-nos
reunir à noite, depois do toque de recolher. E precisamos de um nome para o
grupo.
— Os Falcões? — insinuou alguém, timidamente.
— Não — disse o Jaguar. — Parece brincadeira. Vamos chamar
Círculo.
As aulas começaram na manhã seguinte. Nos intervalos, os do
quarto ano precipitavam-se sobre os cães e organizavam corridas de pato: a um
comando, dez ou quinze rapazes, formados em linha reta, as mãos nos quadris e
as pernas flexionadas, avançavam grasnando e imitando os movimentos de um
palmípede. Os derrotados levavam ângulos retos. Além de revistar e confiscar o
dinheiro e os cigarros dos cães, os do quarto ano preparavam aperitivos de
graxa de fuzil, azeite e sabão, e as vítimas tinham que bebê-los de um só gole,
segurando o copo com os dentes. O Círculo começou a funcionar dois dias após,
pouco depois do pequeno-almoço. Os três anos saíam do rancho num tumulto e espalhavam-se
como uma mancha sobre o descampado. De repente, uma nuvem de pedras passou
sobre as cabeças descobertas e um cadete do quarto ano caiu no chão aos berros.
Já em formação, viram que o ferido era levado para a enfermaria no ombro dos
companheiros. Na noite seguinte, uma sentinela do quarto ano que dormia no relvado
foi assaltada por sombras mascaradas: ao amanhecer, o corneteiro encontrou-o
nu, amarrado e com grandes equimoses no corpo transido de frio. Outros mais
foram apedrejados, sovados; o golpe mais audacioso, uma incursão na cozinha
para derramar sacos de excrementos nas panelas de sopa do quarto ano, mandou
muita gente com cólicas para a enfermaria. Exasperados pelas represálias anónimas,
os do quarto ano prosseguiam o batizado com mais sanha. O Círculo reunia-se
todas as noites, examinava os vários planos, o Jaguar escolhia um,
aperfeiçoava-o e dava instruções. O mês de reclusão forçada transcorria
rapidamente, no meio de uma exaltação sem limites. À tensão do batizado e das
ações do Círculo veio somar-se uma nova agitação: a primeira saída estava
perto, já tinham começado a fazer para eles os uniformes azul-anil. Todos os
dias, os oficiais davam uma hora de aulas sobre o comportamento de um cadete
uniformizado na rua.
— O uniforme — dizia Vallano, revolvendo com avidez os olhos
nas órbitas — atrai as pombinhas como se fosse mel.
“Nem foi tão grave quanto diziam, nem quanto me pareceu no
momento, sem contar o que aconteceu quando Gamboa entrou na casa de banho
depois do toque de recolher, nem se pode comparar esse mês aos outros domingos
de detenção, não mesmo.” Nesses domingos, o terceiro ano era dono do colégio.
Projetavam um filme ao meio-dia, e à tarde vinham as famílias: os cães
passeavam pela pista de desfile, pelo descampado, pelo estádio e pelos pátios,
rodeados de gente solícita. Uma semana antes da primeira saída, provaram os
uniformes de lona: calças cor de anil e túnica preta, com botões dourados;
quepe branco. O cabelo crescia lentamente sobre os crânios, bem como a vontade
de ir para a rua. Na secção, depois das reuniões do Círculo, os cadetes
contavam os seus planos para a primeira saída. “E como foi que soubeste, por
puro acaso ou foi um denunciante, e se o Huarina estivesse de serviço, ou o
tenente Cobos? Pois é, pelo menos não tão rápido, se ele não tivesse descoberto
o Círculo, a secção não teria desabado, não tão depressa, estaríamos no
bem-bom.” O Jaguar estava de pé e descrevia um cadete do quarto ano, um chefe
de turma. Os outros escutavam de cócoras, como de costume; as baganas passavam
de mão em mão. O fumo subia, chegava ao teto, descia até o chão e continuava
circulando como um monstro translúcido e cambiante. “Mas o que foi que ele fez,
Jaguar, também não precisamos carregar um morto nas costas”, dizia Vallano,
“vingança, tudo bem, mas aí já é demais”, dizia Urioste, “o que fede nesta
história é que ele pode acabar vesgo”, dizia Pallasta, “pediu, levou”, dizia o
Jaguar, “se ele se magoar, melhor”, e o que veio primeiro, a pancada, o grito?
O tenente Gamboa deve ter empurrado a porta com as duas mãos ou então abriu-a a
pontapés; mas os cadetes foram surpreendidos não com o barulho da porta nem com
o grito de Arróspide, mas pelo fumo estancado que fugia pela bocarra escura do
alojamento, quase tomada pelo tenente Gamboa, que segurava a porta com as duas
mãos. As baganas caíram no chão, em brasas. Estavam descalços e não se atreviam
a apagá-las. Todos olhavam para a frente e exageravam a atitude marcial. Gamboa
pisou nas pontas de cigarro. Em seguida, contou os cadetes.
— Trinta e dois — disse. — A secção completa. Quem é o chefe
de turma?
Arróspide deu um passo adiante.
— Explica esta brincadeira com todos os detalhes — disse
Gamboa, tranquilamente. — Do começo. E não esqueças nada.
Arróspide olhava de esguelha para os companheiros, e o
tenente Gamboa esperava, quieto como uma árvore. “E o modo como chorava? E
depois éramos todos seus filhos quando começamos a choramingar, e que vergonha,
meu tenente, nem imagina como nos batizaram, homem não se defende?, e que
vergonha, batiam, meu tenente, magoavam, insultavam a mãe, olhe o fundilho do
Montesinos de tanto ângulo reto que apanhou, meu tenente, e ele não passava
recibo, que vergonha, não dizia nada, que mais, factos concretos, sem
comentários, falem um por um, não façam barulho, não incomodem as outras secções,
e que vergonha para o regulamento, começou a recitar, devia expulsar toda a
gente, mas o Exército é tolerante e compreende que os cães ainda ignoram a vida
militar, o respeito ao superior e a camaradagem, e basta de brincadeira, sim,
meu tenente, e como é a primeira e a última vez não vou dar parte, sim, meu
tenente, vamos ver se ficam homenzinhos, sim, meu tenente, fiquem a saber que
basta uma reincidência e só paro no Conselho de Oficiais, sim, meu tenente, e
decorem o regulamento se quiserem sair no sábado que vem, e agora vão dormir,
sentinelas a postos, relatório em cinco minutos, sim, meu tenente.”
O Círculo não se voltou a reunir, embora mais tarde o Jaguar
pusesse o mesmo nome ao seu grupo. Nesse primeiro sábado de junho, os cadetes
da secção, espalhados ao longo da grade enferrujada, viram os cães das outras
seções, soberbos e arrogantes como uma torrente, precipitando-se pela avenida
Costanera, tingindo-a com os seus uniformes reluzentes, o branco imaculado dos
quepes e as malas lustrosas de couro; viram-nos aglomerando-se na parada
maltratada, o mar crepitante às costas, à espera do autocarro
Miraflores-Callao, ou avançando pelo meio da pista até à avenida de las
Palmeras, para apanhar a avenida Progreso (que corta os sítios e entra em Lima
por Breña ou, na direção oposta, continua baixando em curva suave e amplíssima
até chegar a Bellavista e Callao); viram-nos desaparecendo e, quando o asfalto
ficou novamente solitário e humedecido pela neblina, continuavam com os narizes
metidos no arame; em seguida, escutaram a corneta que chamava para o almoço e
foram caminhando devagar e em silêncio para os seus lugares, distanciando-se do
herói que havia contemplado com as pupilas cegas a explosão de júbilo dos
ausentes e a angústia dos detidos, que desapareciam entre os prédios cor de
chumbo.
Nessa tarde, quando saíam do rancho diante do olhar lânguido da vicunha, surgiu a primeira luta na seção. “Eu deixava, o Vallano deixava, o Cava, o Arróspide? Não, ninguém deixava, só mesmo ele, o Jaguar não é Deus, se ele respondesse, aí era tudo diferente, se aguentasse a situação ou pegasse num pau, numa pedra, aí era tudo diferente, até se corresse dali, mas tremer, homem, isso não se faz.” Ainda estavam na escadaria, amontoados, e de repente começou uma confusão e dois caíram na relva, dando pontapés. Os dois levantaram-se; trinta pares de olhos contemplavam-nos dos degraus, como se estivessem num palanque. Não chegaram a intervir, nem compreenderam logo o que aconteceu, porque o Jaguar se lançou como um felino atacado e bateu bem na cara do outro, sem aviso, e caiu em cima dele e continuou batendo na cabeça, na cara, nas costas; os cadetes observavam os dois punhos constantes e nem escutavam os gritos do outro, “desculpa, Jaguar, empurrei sem querer, juro que foi sem querer”. “Só não devia ter-se ajoelhado, isso não. E juntar as mãos, parecia a minha mãe nas novenas, um ajudante de missa a receber a primeira comunhão, parecia que o Jaguar era o bispo e o outro estava a confessar-se, lembro-me muito bem”, dizia Rospigliosi, “e fico de pelo em pé, homem.” O Jaguar estava em pé, olhava com desprezo para o rapaz ajoelhado e ainda estava com a mão levantada, como se fosse bater de novo no rosto lívido do outro. Os demais nem se mexiam. “Tu dás-me nojo”, disse o Jaguar. “Não tens dignidade nem nada. És um escravo.”